Alguns nomes históricos em galego/português para as partes da espada Saturday February 8th, 2020 – Posted in: AGEA Documentos, Destreza Comum, Destreza Portuguesa, Verdadeira Destreza
Diniz F. Cabreira
Arte do Combate
AGEA Editora
Atualizado a 20200207
Introdução
Com frequência ao estudar diferentes tradições de HEMA utilizamos termos emprestados de outros idiomas. Muitas vezes esses termos são flutuantes e mudam dependendo da fonte que estejamos a ler. Muitas vezes o campo lexical resultante é mistura de termos novos e antigos, específicos da nossa arte e emprestados, próprios à nossa língua e estrangeiros.
É lógico e normal que seja assim nos estágios de pesquisa e experimentação, mas na hora de assentar uma prática regular e, especificamente, na hora de ministrar aulas a pessoas que talvez nunca vão ler as fontes acho importante ter uma terminologia consistente. Ainda mais: acho importante caminharmos para o consenso de utilizar uma terminologia comum no âmbito lusófono, visando facilitar a mútua compreensão.
Penso que na procura dessa terminologia devemos recorrer às fontes técnicas mais antigas que temos disponíveis. Estou a falar do amplo corpus terminológico dos tratados da Verdadeira Destreza e da Destreza Comum escritos em Portugal nos S.XVI – XVIII. Nesses textos — e, talvez, em textos publicados contemporaneamente, como dicionários — vamos encontrar uma esgrima no seu apogeu, e portanto a maioria dos términos autóctones.
Desde o S.XVIII veremos um declínio nas escolas ibéricas de esgrima que vai trazer a incorporação de armas, estilos e vocabulário forâneo (como se pode ver na questão «folha»/*«lâmina»).
Seria interessante contar com fontes anteriores ao XVI para a terminologia que utilizar no estudo de armas anteriores a esta época (a espada a duas mãos e uma mão, etc), mas não me consta documentação técnica anterior ao S.XVI, excepção feita do pouco material recolhido no Bem Cavalgar — que por completude consultei também em procura de termos, embora fale das espadas muito levemente.
Também fica pendente, para um artigo futuro que com certeza complementará este, uma revisão em detalhe de todas as ocorrências do termo «espada», e os termos a ela associados, no vastíssimo Vocabulário de Bluteau.
Portanto, compre sinalar que este é um trabalho incompleto. Se tens conhecimento de termos adicionais, ou duma outra fonte lusófona anterior ao S.XVI, ou de qualquer outra referência relevante, agradeço contactes comigo (diniz@artedocombate.gal). Se descobres, nas fontes que já estudei, nova terminologia que não recolho cá, agradeço também me informares, para atualizar o documento (mudanças que ficarão também indicadas nele).
Metodologia
Os termos apresentados foram tirados do material português publicado pela AGEA Editora até a data, que consiste em obras dos S.XVII – XVIII.
Como suplemento, utilizei o Vocabulario portuguez e latino de Raphael Bluteau, publicado nos inícios do S.XVIII, para prover uma definição de cada termo (quando houver). Não se trata dum texto específicamente técnico, mas é contemporâneo aos últimos textos da nossa amostra.
Os negritos nas citações dos textos (para destacar os termos) são meus.
Algumas citações são abreviadas com […] quando há trechos não relevantes. Nas tiradas do Vocabulário, para os termos polissêmicos apenas apresento os significados e usos relativos à espada.
Ao longo deste artigo utilizo o asterisco anteposto (v.g. *lâmina) para indicar palavras erradas, modernismos ou termos dos que não tenho documentação histórica.
No final do artigo tens as referências bibliográficas das obras citadas, com links para a compra ou consulta.
Resumo do campo lexical
Referências
Espada
É o termo utilizado em toda a literatura técnica para referir o que na atualidade chamamos de «espada roupeira» (rapier em inglês ou francês, ropera em espanhol). Como sucede noutras fontes de outras épocas, em cada momento histórico a espada socialmente dominante é chamada, simplesmente, de «espada».
A espada vem definida no Vocabulário Portuguez e Latino de Raphael de Bluteau como:
ESPADA: Arma offensiva, composta de huma folha de ferro, que tem fio & ponta, guarnição, punhos, copo, virotes, guardamão, maçãa & se traz na cinta. […] [Vocabulário]
Vejamos os termos detalhados no seu contexto.
Maçã ou pomo, cabo, folha, ponta
Um trecho da Oplosophia reúne vários destes elementos:
Serve tambem para examinar qualquer espada, se está no pezo bem repartida, e se são os cabos justamente proporcionados à folha, pondosse por fiel sobre hũ dedo neste numero, a que como he começando da maçam o segundo alicoto ao de dez, e sua quinta parte, mostra que as quatro daly para a ponta hão de pezar igualmente o que esta só, assi como igualmente fazem b todas o numero Denario, e se a espada ficar por nivel estará bem repartida, e quando não tanto mais ou menos pezar para qualquer dos lados, tanto terá de falta ou de demazia. [Oplosophia, f.(11)r]
Tambem se deve conhecer que todas as estocadas que se armão sobre o braço dereyto nacem do fim do talhos; e do revezes todas as que se armão sobre o braço esquerdo, e dos revezes tambem todas as que se quizerem formar com a maçam no hombro dereyto. [Memorial]
Pomo (sinónimo de «maçã» –etimologicamente provém do francês pomme, «maçã»):
Tem o numero de dez que ultimamente como remate desta perfeyta agraduação sinala o pomo da espada… [Oplosophia, f.(11)r]
Maçã aparece, com tudo, com maior frequência que pomo utilizado para esta parte da arma. Em efeito, o Vocabulário traz os significados e usos assim:
MAÇÃA: pomo vulgar. maçãa da espada, a cabeça onde se embebe, e prende o espigão da folha. [Vocabulário]
POMO: toda a sorte de maçãas, peros, camoezes. [Vocabulário]
Quanto ao resto:
CABO: peça de madeira, marfim, metal e outras materias em que se embebe o espigão de algum instrumento, e polo qual se pega v.g. cabo da faca, da navalha; e assim a parte de outros instrumentos, que se empunha v.g.,, o cabo da espada. [Vocabulário]
PONTA: extremidade aguda v.g.,, ponta da espada, da agulha, do dardo, pique, piramide, lança; do dedo, estaca, penedo, cepa, do arado, da lingua. [Vocabulário]
Folha versus lâmina, forte e fraco
«Lâmina», termo atualmente usado em Portugal e no Brasil, ganha força nos últimos séculos provavelmente como galicismo, por làme. O termo histórico mais usado parece ser «folha» até fins do S.XIX. Manuel Valle Ortiz, da AGEA Editora, identificou o ponto de transição entre um e outro termo na literatura técnica (repare-se nas datas).
Forte e fraco de uma espada são respectivamente: o forte a parte da folha que vai desde o punho até aos dois terços… [Soares, 1883, p.9].
Florete é uma arma exclusivamente destinada ao ensino da esgrima de ponta. Compõe-se de duas partes: lamina e punho. A lamina divide-se em forte e fraco.» [Martins, 1895, p.13].
Os textos do nosso corpus costumam utilizar «folha»:
Os palmos saõ seis da ponta ate a maçam com que vem a ficar a folha com a marca ordinaria de cinco e meio… [Oplosophia, f.(11)v]
…ou pegarlhe de sima para bayxo na mesma guarnição com movimento natural e não importa que fique a folha para hũ, ou outro lado… [Oplosophia, f.(77)v]
Há apenas um par de referências a «lâmina» em Oplosophia:
Hé buril vossa pena, que a descreve / Na lamina immortal da vossa Espada. [Oplosophia, f.(7)v]
Esta primeira pertence a um dos sonetos da dedicatória do livro (não ao corpo escrito por Figueiredo) e parece uma referência artística: o buril trabalha a lâmina de metal para as gravuras, e quem escreveu os versos pretendeu reforçar essa imagem chamando à folha da espada por lâmina.
…por ser o Braçal muyto apparatoso, e forte; E ou se componha de varias laminas de aço, ou de hũa só, seu officio hè reparar, des viar, rebatter, atalhar, e ferir. […]
Quando o Braçal fizer companhia a espada branca, se deve situar com o punho junto à guarnição, e estendido o braço o que permitirem as laminas… [Oplosophia, f.(45)v]
Esta segunda tem interesse, por quanto o termo lâmina é usado num contexto marcial e técnico por Figueiredo, mas com clareza não para referir a folha da espada (como sim faz noutros trechos) senão as lâminas de metal que formam uma peça de armadura para proteger mão e/ou braço.
O Vocabulário utiliza «lâmina» para definir «folha», e ao invés. Porém, o uso de «lâmina» por espada aparece marcado como figurativo (o tudo pela parte), enquanto a folha é especificamente a parte da espada:
LAMINA: folha, chapa de metal. § f. Espada, ou arma offensiva, ou defensiva feita de laminas de ferro v.g. tira a lamina fulgente da bainha.
FOLHA: […] A lamina delgada, longa da espada. [Vocabulário]
Quanto às partes da folha:
Entra tambem a adaga com a espada conhecendolhe as partes fracas, e a cantidade forte, indo sempre unida a seu mesmo centro sem o mudar; e applicada ao fraco da espada, pondo nos movimentos o corpo onde com ella se fizer angulo… [Oplosophia f.42r]
Adaga tem a mesma calidade do forte de hũa espada. [Oplosophia f.79v]
Tomará, ou ganhará o Destro a espada com o forte no fraco… [Oplosophia f.83v]
A força da efpada. O que vai do meyo da efpada para a guarniçaõ.
O fraco da efpada. O que vai do meyo delia para aponta. [Vocabulário]
Champa
Este termo não aparece no corpus da AGEA Editora, mas sim no quase contemporâneo Vocabulário.
CHAMPA. Da Espada. A parte da espada, que he chata. Dar a alguem de champa. [Vocabulario]
Fio, gume, verdadeiro, falso
«Fio» é muito mais frequente que «gume» na bibliografia, embora este último aparece documentado e seja de uso mais frequente na Galiza na actualidade.
E dali se tirará para dar hũ revez cortanto por detras com o outro gume do Montante… [Memorial]
…advertindo que todos estes desvios de revez se fazem com o fio falso. [Memorial]
Há geralmente na espada dous fios hũ natural que he o que mais de ordinario corta e repara, e outro a que os Destros chamão fio falso, [que hũ e outro sem artificio tomarão os nomes da natureza de seus efeitos: ao natural chamou Marozzo a fio direyto, por ser o que mais direytamente offende e defende, Barboza fio verdadeyro, por ser o mais certo, e pronto para os golpes, e ao fio falso, fio violento… [Oplosophia, f.20r]
O «fio *direito» atribuído a Marozzo acho que podemos considerar decalque ou estrangeirismo. «Fio natural» seria sinónimo de «fio verdadeiro», bem como «fio violento» de «fio falso», e parece ter origem na descrição de movimentos utilizada na Verdadeira Destreza: os movimentos naturais são descendentes e os movimentos violentos ascendentes.
FIO. Porção de metal ductil, adelgaçado pela fieira. […] O gume, corte da espada, navalha, faca; e dar fio, amolar bem. [Vocabulario]
FIO da espada. A extremidade da folha da espada, donde por ser mais delgada, & ter mais aço, corta melhor. [Vocabulario]
GUME, a parte do instrumento que corta v.g.,, o gume da faca, da espada, do machado, o fio oposto a cota. H. Pinto., ferro boto sem gume. § Dar de gume (opposto a dar de ponta, de cota ou de chapa) i.e. com a parte afiada. [Vocabulario]
GUME da espada, ou de outro ferro. [Vocabulario]
Guarnição, virotes, cruz
«Guarnição» parece referida ao conjunto da defesa da mão, que no contexto do XVII pode ser (em termos modernos) de *anéis, de conchas ou de *taça/*copo.
Para de pensado se tirar a espada com a força artificiosa hase de pegar na goarnição desta maneira: pegou na concha que corresponde a parte de dentro do contrario; e o dedo ao que vulgarmente se diz pollegar, se poem quasi o arrimado ao virote inferior, na concha que diz respeito a parte de fora, desta sorte fica o virote entre este dedo e o yndes, que he o mais vizinho a elle; e o dedo auricular que he o que comũmente se diz mindinho ou meminho fica na concha de dentro encostado ao virote superior: e neste caso partisipe a mão do extremo de unhas ariba, porque desta maneyra posta se pode volver athe chegar unhas abaixo, e pela disposição em que estara a do contrario que sera quasi unhas ariba, em rasão de a ter serrada com a impunhadura, e ja dado meya volta com que sera mais facil ao destro fazer com que acabe de voltar, aplicando força na sua mão esquerda virandoa athe participar do extremo de unhas abaixo, e antes que acabe de dar a volta sentira o contrario os dedos e nervos tão oprimidos que ou ha de cargar a espada ou sofrer que se lhe desconjuntem os ossos do braço. [Marte, 125v]
GUARNIÇÃO: Guarnição da espada. São os copos, punho & cruz. [Vocabulário]
VIROTE: Virotes da espada, o ferro atravessado sobre os copos, e que sobeja por fora delles. [Vocabulário]
A cruz é o onde os virotes cruzam a espada; ponto de transição entre guarnição e a folha. Por extensão, a parte imediatamente anterior no forte da espada.
… [a] cruz da espada he fraco para ferir e forte para reparar… [Oplosophia f.(11)v]
Conchas, Copos, Guarda-Mão
Para de pensado se tirar a espada com a força artificiosa hase de pegar na goarnição desta maneira: pegou na concha que corresponde a parte de dentro do contrario… [Marte, 125v]
«Concha» só aparece no Lições de Marte. O Vocabulário não recolhe este significado.
«Copo» ou «copos», referido à parte da espada que protege a mão, não aparece em nenhum livro do corpus. É listado, porém, no Vocabulário:
GUARDA-MÃO: O arco que nasce dos copos da espada e termina na maçã. [Vocabulário]
Aí aparece também referência ao «guarda-mão» que não vemos no corpus tampouco.
Há uma referência aos copos do bastão do mestre em Oplosophia, mas semelha referir-se a pontas ferradas para o mesmo.
Espiga, Espigão
ESPIGA, s.f.: A porção delgada e aguda das facas, e espadas, que se enxire, e encrava nos cabos, copos, e manchis. [Vocabulário]
Bibliografia
Primária
- [Bem Cavalgar]: Duarte de Aviz, Leal conselheiro, e Livro da ensinança de bem cavalgar toda sella
- [Coimbra]: Vários, Destreza das Armas. Compostela: AGEA Editora, 2016.
- [Godinho]: Luis Godinho, Arte de Esgrima. Compostela: AGEA Editora, 2015.
- [Memorial]: Diogo Gomes de Figueiredo, Memorial da Prattica do Montante
- [Manuscrito]: Anônimo, Manuscrito da Espada. Compostela: AGEA Editora, 2013.
- [Marte]: Anónimo, Lições de Marte. Compostela: AGEA Editora, 2014.
- [Martins]: Martins, Antonio Domingos Pinto. Manual de esgrima. Lisboa: Antonio Maria Pereira, 1895
- [Oplosophia]: Diogo Gomes de Figueiredo, Oplosophia e Verdadeira Destreza das Armas. Compostela: AGEA Editora, 2013.
- [Soares]: Soares, Francisco Adolfo Celestino. Esgrima ornada con 10 gravuras. Lisboa: Corazzi, 1883
- [Thomas Luiz]: Thomas Luis, Tratado das Lições da Espada Preta. Compostela: AGEA Editora, 2017.
Secundária
- [Usos]: Dândis, pomposos e briguentos: usos e costumes nas salas de armas ibéricas dos s. XVI e XVII. Compostela: AGEA Editora, 2016.
- [Vocabulario]: Raphael Bluteau, Vocabulario portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728.
- [Priberam]: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Lisboa: Priberam Informática, 2017.
- [Valle]: Manuel Valle, Nueva bibliografía de la antigua esgrima y destreza de las armas. Compostela: AGEA Editora, 2012.
Histórico de mudanças
2017: primeiro rascunho.
20200208: edição e primeira publicação.